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terça-feira, julho 25, 2006

Cidade não Insignificante

Este é o 4º artigo desta série. Os três primeiros são:

01 - Paulo, uma Introdução
02 - O Crescimento de Roma
03 - Os Judeus sob o Domínio Estrangeiro


Província da Cilícia

Quando Paulo foi preso durante sua última visita a Jerusalém (57 d.C.) e levado perante o tribuno militar que comandava a corte auxiliar na fortaleza Antônia, este achou que ele fosse um agitador egípcio que recentemente tentara um tipo de golpe nas proximidades da cidade. Percebendo seu erro, quando ouviu Paulo falando grego, perguntou quem ele era e recebeu a resposta: “Eu sou judeu, natural de Tarso, cidade não insignificante da Cilícia” (At 21.39).

A Cilícia, território que margeava o Mediterrâneo no sudeste da Ásia Menor, abrangia duas regiões bem diferentes. Havia a planície fértil no leste chamada de Cilícia Pedias, entre as montanhas Tauro e o mar; a rota de comércio da Síria para a Ásia Menor passava por ela, atravessando o monte Amano pelas Portas Sírias e cruzando a cadeia de montanhas do Tauro, pelas Portas da Cilícia, para o centro da Ásia Menor. A oeste destas ficava a região costeira montanhosa da Cilícia Tracheia (Cilícia acidentada), onde a cadeia de Tauro desce para o mar.

Nos registros hititas o território da Cilícia é chamado de Kizzuwatna; era ligado ao Império Hitita por um tratado e depois lhe foi incorporado, até a queda deste império 1.200 a.C. Na Ilíada de Homero, os moradores da Cilícia são mencionados como aliados dos troianos; a esposa de Heitor, Andrômaca, era uma princesa da Cilícia. No nono século a.C. a Cilícia caiu sob o controle dos assírios, que a chamavam de Hilakku (provavelmente a “Heleque” de Ez. 27.11). Do começo do sexto século a.C. a Cilícia foi governada por uma sucessão de reis nativos que usavam o título dinástico de Sienese; eles continuaram governando sob a suserania do Império Persa até c. 400 a.C., quando foram substituídos por sátrapas. Em 333 a.C. a Cilícia se tornou parte do império de Alexandre, depois que venceu a batalha decisiva em Isso, no leste do território. Depois da morte dele, a região ficou sob o controle dos selêucidas, apesar de, por algum tempo, a posse de parte da costa da Cilícia Tracheia ser contestada pelos ptolomeus. Quando os romanos forçaram Antíoco III a renunciar à maior parte dos seus domínios na Ásia Menor (188 a.C.), o leste da Cilícia continuou fazendo parte do Império Selêucida por mais algumas décadas, até que a desintegração do domínio selêucida, na segunda metade do segundo século a.C., e o conseqüente uso da Cilícia Tracheia como base de salteadores e piratas levou os romanos a envolver-se cada vez mais diretamente nos assuntos daquela região. Parte da Cilícia ocidental tornou-se província romana em 102 a.C. e, depois da brilhante vitória de Pompeu sobre os piratas em 67 a.C., toda a Cilícia foi submetida à condição de província, tendo Tarso por capital. A partir de 25 a.C., a Cilícia oriental (incluindo Tarso) foi unida, para fins administrativos à Síria, que se tornara província romana sob Pompeu, em 64 a.C. A Cilícia ocidental foi cedida a uma sucessão de reis vassalos. Quando o último destes abdicou em 72 d.C., a Cilícia oriental foi separada da Síria e unida à ocidental para forma a província da Cilícia. Durante toda a vida de Paulo, porém, a região da Cilícia em que ficava sua cidade natal, fez parte da província unificada da Síria-Cilícia, situação implícita na afirmação de Paulo de que, uns três anos após a sua conversão, após uma breve visita a Jerusalém, ele foi “para as regiões da Síria e da Cilícia” (Gl. 1.21).


A Cidade de Tarso

A principal cidade da planície fértil da Cilícia oriental estava localizada à margem do rio Cnido, a uns quinze quilômetros da sua foz e a uns cinqüenta quilômetros das Portas Cilícias (na entrada entre as atuais cidades de Mersin e Adana). Tarso era uma cidade fortificada e importante entreposto comercial antes de 2.000 a.C. No segundo milênio a.C. ela é mencionada em registros hititas como cidade principal de Kizzuwatna. Foi destruída durante a incursão dos Povos do Mar em 1.2000 a.C. e repovoada algum tempo depois pelos gregos. Foi conquistada pelo rei assírio Salmaneser III em 833 a.C. e novamente por Senaqueribe, em 698 a.C. Sob os persas, Tarso foi a capital do reino vassalo e posterior satrapias da Cilícia. Começou a emitir suas próprias moedas no quinto século a.C. em 401 a.C. Ciro, o Jovem, com seus Dez Mil, passou vinte dias na cidade em seu caminho para reclamar o trono persa, e trocou presentes com o rei Sienese, cujo palácio ficava em Tarso.

Alexandre, o Grande, salvou a cidade de ser incendiada pelos persas que retrocediam em 333 a.C. Sob seus sucessores selêucidas ela adotou o nome de Antioquia no Cnido, nome este que consta da nova emissão de moedas no reinado de Antíoco IV (171 a.C. em diante). Esta nova emissão de moedas parece coincidir com a reformulação da constituição da cidade, que lhe concedeu maior autonomia municipal. Em 83 a.C. ela caiu sob o poder de Tigrane I, rei da Armênia, aliado e genro de Mitridates VI, porém passou às mãos dos romanos em resultado das vitórias de Pompeu e tornou-se capital da província da Cilícia, mantendo sua autonomia como cidade livre, em 67 a.C. Cícero residiu na cidade durante seu mandato de procônsul da Cilícia em 51-50 a.C. Quando Júlio César visitou a cidade em 47 a.C., ela adotou o nome Juliópolis em sua honra. Após a morte de César e a derrota do partido que lhe era contrário, em Filipos em 42 a.C., Tarso gozou do favor de Antônio, que controlava as províncias orientais de Roma. Foi ali que aconteceu, em 41 a.C., o celebrado encontro entre Antônio e Cleópatra, quando ela foi levada de barco, rio acima, vestida de Afrodite.

Da barca
Um estranho perfume invisível alcança os sentidos
Dos que estavam no atracadouro. A cidade lançou
Seu povo ao seu encontro; e Antonio,
Entronizado no mercado, estava sozinho,
Assobiando; como que ocioso,
Seu olhar veio a cair sobre Cleópatra,
E abriu uma brecha na natureza.
(Shakespeare – Marco Antonio e Cleópatra – Ato 2, cena 2)


Quando Augusto governava o mundo romano, Tarso gozou de outros privilégios, como a isenção de impostos imperiais. No último período do domínio de Antônio no Oriente Próximo e, alguns anos depois, Tarso tinha sofrido sob a má administração de um governador nomeado por ele, chamado Boécio. Augusto confiou a administração da cidade a um dos seus mais ilustres cidadãos, Atenodoro, o Estóico, que fora seu próprio tutor. Retornando a Tarso, Atenodoro expulsou Boécio e seus companheiros, e reformou a administração civil. Pode ter sido nesta época que foi fixado o valor de 500 dracmas em propriedades, para ser admitido na lista dos cidadãos. Atenodoro e seu sucessor, Nestor, o Acadêmico (tutor de Marcelo, sobrinho de Augusto), também exerceram grande influência cultual em Tarso.

De acordo com o geógrafo Strabo, escrevendo provavelmente nos primeiros anos do primeiro século d.C., o povo de Tarso era ávido por atividades culturais. Eles se dedicavam ao estudo da filosofia, das artes e “de todo o círculo de aprendizado em geral” – toda a “enciclopédia” – a ponto de Tarso, neste aspecto pelo menos, ultrapassar até Atenas e Alexandria, cujas escolas eram freqüentadas mais por visitantes do que por seus próprios cidadãos. Tarso, em resumo, era o que poderíamos chamar de cidade universitária. No entanto, as pessoas não vinham de outros lugares para estudar em suas escolas; os estudantes de Tarso eram originários da cidade, que com freqüência saíam para completar seus estudos em outro lugar e raramente voltavam. Atenodoro foi um dos que saíram, só que retornou mais tarde.

Um quadro menos lisonjeiro de Tarso do que o de Strabo provém de Filostrato em sua obra Vida de Apolônio (o sábio neopitagórico). De acordo com Filostrato, Apolônio, que nasceu no começo da era cristã em Tiana, na Capadócia, veio para Tarso com a idade de catorze anos, para estudar sob o retórico Eutidemo. Ficou muito ligado a seu professor, mas se decepcionou com a atmosfera geral de Tarso que, de modo algum, favorecia os estudos, pois os moradores eram viciados em luxúria, frivolidades e insolência, e “davam mais atenção ao seu linho fino do que os atenienses à sabedoria”. Por isso saiu de Tarso à procura de um ambiente mais propício.

Este relato, porém, não deve ser levado muito a sério; em sua obra, Filostrato foi mais romancista do que biógrafo sério e, escrevendo por volta de 200 d.C., provavelmente estava influenciado por Dio Crisóstomo que, em dois discursos feitos no começo do segundo século d.C., denunciara a falta de seriedade moral dos moradores de Tarso.

A prosperidade de Tarso estava baseada na planície fértil em que se localizava. Tecidos feitos em Tarso, de linho que crescia na planície, são mencionados repetidamente por autores da Antigüidade (como Filostrato). Escritores romanos também fizeram referência a um material local chamado de cilicium, tecido de pelo de cabra, do qual se fazia mantos para proteger contra o frio e a umidade.

Quando Paulo afirmou ser “de cidade não insignificante”, tinha claramente bons motivos para descrever Tarso assim. Se suas palavras significam (como parece ser o caso) que seu nome estava na lista dos cidadãos de Tarso, isto indicaria que ele nasceu em uma família que possuía a cidadania. As exigências para ser cidadão, definidas talvez por Atenodoro, já foram mencionadas. Dio Crisóstomo dá a entender que, ao se organizar assim como uma plutocracia, Tarso barrou os tecelões de linho e outros trabalhadores da cidadania, mas não parece haver motivo por que alguns operários não se teriam qualificado com base nas suas posses. Lucas diz que Paulo era um “fazedor de tendas” (skenopoios), do que podemos entender que ele estava envolvido na fabricação de produtos do cilicium local; contudo, ele parece ter feito parte de uma família bem de vida.

As perguntas sobre sua cidadania de Tarso foram levantadas mais por ele ser judeu do que por ser fazedor de tendas. O grupo de cidadãos como em outras cidades de predominância grega, provavelmente era organizado em tribos ou phylai. Como a vida comum da tribo ou phyle envolvia cerimônias religiosas que teriam sido ofensivas aos judeus, tem sido dito que os cidadãos judeus de Tarso estavam agrupados em uma tribo só deles, solenizada por cerimônias de religião judaica. Isto pode ter realmente sido o caso , apesar de não termos evidências explícitas deste fato. Em muitas cidades gentias os imigrantes judeus viviam como estrangeiros residentes, porém em outras, como em Alexandria, Cirene, Antioquia da Síria, Éfeso e Sardes eles gozavam de direitos de cidadãos, e podem muito bem ter vivido assim como grupo distinto em Tarso.

O próximo artigo desta série é ESTE HOMEM É CIDADÃO ROMANO